Observe o lugar em que você está. Sua mãe à beira do fogão preparando aquela comida cujo cheiro lhe abraça. Observe o sorriso do seu filho quando você chega cansado do trabalho. Olhe para o lado e observe o seu amor, a beleza que ele possui, quantos sentimentos são transferidos em apenas um olhar. Mas, agora pare. Feche os olhos, e por alguns segundos tente observá-los. Encare a escuridão! Imagine viver uma vida sem poder mais vê-los. Para você seria impossível, não? Mas essa começou a se tornar a realidade do Enio, ainda aos 24 anos de idade, ao descobrir que era portador de retinose pigmentar, uma doença ocular rara, hereditária e degenerativa que lhe causou uma deficiência visual grave. “Nessa idade, eu tive problemas de vista e comecei a usar óculos. No prazo de oitos anos tive uma perda irreversível e hoje devo ter somente 2% ou 3% da visão.” Em uma família de seis irmãos, quatro são vítimas da doença. Aos 30 anos foi quando enfrentou a fase crítica.
Ouve-se muito falar que a maior característica que difere o homem do animal é a capacidade de adaptação; porém, sabe-se que todo e qualquer processo de mudança, por menor que seja, gera transtorno. Um simples percurso da sala até a cozinha era doloroso. A cabeça não saía ilesa sempre que se chocava contra as paredes, e as canelas, os ombros e o dedo mindinho tornaram-se vítimas frequentes daquela escuridão. “Naquela fase de desespero em que eu estava perdendo tudo, eu não estava aceitando a dificuldade. Eu não estava adaptado para aquilo”, conta Enio. Mas o emocional é que, de fato, não estava adaptado à nova vida. A perda, a dependência e a não aceitação o deixaram em um labirinto depressivo que o levou para a única fuga possível naquele momento: o álcool. “Entrei em desespero, fiquei depressivo, comecei a beber e fumar demais. Nessa época, minha esposa, Joana, trabalhava enquanto eu estava encostado, aguardando a aposentaria e cuidando da nossa filha mais velha. Foi uma fase muito difícil, doído para mim. Tinha dias que ela chegava em casa e eu estava caído do chão, bêbado. Era assim a minha vida.”
Ele é pai da Eunice (26), Josiane (20) e avô da pequena Sophia (3), seu maior “troféu”. À sua maneira, Enio enfrentou as dificuldades, e antes que sua história fosse apagada pelo álcool, o esporte o salvou. Aos 36 anos, descobriu no golbol, que ainda estava vivo e muito melhor, não estava sozinho. “Por fim, encontrei o esporte adaptado. A FADA me convidou a participar dos treinos no Uniaraxá. Então, comecei a gostar do golbol e descobri a corrida também.”
Enio conta que tudo que aprendeu foi por meio do esporte. Aos poucos foi se adaptando. Aprendeu a andar em casa sozinho, a fazer comida, arrumar a casa e até ousa fazer um churrasco no fim de semana. “Antes, eu tinha muita vergonha de sair no portão de minha casa por medo do preconceito.”
Italo, um jovem de 36 anos, também teve que enfrentar outra realidade em 2010 quando sofreu um acidente e queimou 40% do corpo. “Eu queimei com gasolina na Terra Viva, onde eu trabalhava. Eu estava pintando umas ferragens e um rapaz passou com a gasolina perto da solda, e quando o fogo pegou, no susto, ele jogou a lata para trás e caiu no meu braço.” Foram mais de cinco cirurgias para a reconstituição dos tecidos, e assim como Enio, Italo também precisou perceber que não estava sozinho nessa nova jornada.
E tudo começou a mudar quando foi convidado pelo Bruno, um vizinho e professor no Uniaraxá, para conhecer o projeto da FADA na faculdade. Destino ou plano de Deus, foi aí que os caminhos se encontraram. Enio, que já participava de algumas competições de corrida, foi um incentivo para que Italo se recuperasse e encontrasse um novo olhar para a vida. “Eu aprendi com o Enio que essa queimadura minha não chega nem perto de perder a visão. Isso, para mim, foi um aprendizado de Deus para eu dar valor às mínimas coisas da vida, à família, aos amigos. Com ele, aprendi a enxergar a vida pelo lado bom.”
Italo é guia voluntário de Enio há sete anos. A sintonia entre os amigos é grande, porém quase imperceptível. Durante a corrida não há conversas, é com um singelo movimento das mãos seguradas por uma guia, buchinha de cabelo, que a direção é decidida. “Ele é um ótimo guia e tem muita paciência. Para guiar um deficiente na corrida tem que ter muita agilidade, tem que me tirar o medo e passar confiança, e ele me passa essa confiança.”
Enio participa do golbol duas vezes por semana, e a dupla treina três vezes junta para conseguirem subir ao pódio nos 10 quilômetros. Já são cerca de 140 medalhas e diversos troféus que enfeitam a estante da sala. E, claro, uma amizade que é o maior prêmio. Sonhar, nunca desistir. É o grito de força quando o corpo não quer mais ir adiante. É o lema de Enio e Italo. As pernas avançam, juntas, no mesmo ritmo, no mesmo desejo de chegar. Não é só uma questão de ultrapassar a linha de chegada, mas de vencer a si mesmo, os próprios medos, os preconceitos. Esta é uma história de amizade e superação que faz acreditar que o mundo é muito melhor quando se tem amigos e o esporte. “Se eu não tivesse o esporte e o Italo, acho que hoje eu nem estaria aqui para contar esta história”, finaliza.