Após os grandes protestos de 2019 contra a desigualdade e pela implementação de reformas, o Chile oficializou para o próximo dia 4 de setembro o último plebiscito que altera a Constituição do país.
Serão três votações no total: em 2020, a população aprovou a possibilidade de mudar a carta magna chilena. No ano seguinte, foram eleitos os membros da convenção encarregados do novo texto. Agora, o país decidirá finalmente se aprova ou rejeita a proposta.
A convenção iniciou seus trabalhos em 4 de julho do ano passado, ainda sob o governo de Sebastián Piñera (2018-2022). Foi presidida por Elisa Loncón, acadêmica mapuche (a maior etnia indígena do país). A última sessão aconteceu exatamente um ano depois, nesta segunda-feira (4/7), presidida por María Elisa Quinteros, epidemiologista.
No mesmo dia, o presidente chileno, Gabriel Boric, recebeu uma cópia do texto, com 178 páginas, 388 artigos e 54 regulamentos provisórios.
“Há algo sobre o qual devemos todos estar orgulhosos: que no momento da crise política, institucional e social mais profunda da nossa pátria em décadas, os chilenos e chilenas optamos por mais democracia e não por menos”, disse Boric durante a cerimônia desta segunda-feira.
“Hoje é um dia que ficará na história do país. Hoje, iniciamos uma nova etapa: trata-se de ler, estudar e debater a proposta constitucional”, disse o presidente, que assinou o decreto que convoca oficialmente o plebiscito em 4 de setembro para ratificar ou rejeitar o texto.
![Acadêmica mapuche Elisa Loncón foi primeira presidente da Convenção Constitucional — Foto: GETTY IMAGES/via BBC](https://s2.glbimg.com/3PXb0BtDeWfEUUGmEaQVNfhXNUo=/0x0:640x360/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_59edd422c0c84a879bd37670ae4f538a/internal_photos/bs/2022/A/w/FtrBmBQBupIwkVZxmM7Q/chile-2.png)
Caso seja aprovada no voto popular, a Constituição entra em vigor imediatamente e serão criados os novos órgãos previstos pelo texto, como a Agência Nacional de Águas ou a Câmara das Regiões, que substituirá o Senado.
Caso contrário, a Constituição de 1980 permanecerá em vigor, em contraste com a esmagadora maioria (cerca de 80%) que votou pela sua substituição.
A BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, mostra o que muda caso a proposta seja ratificada.
Uma “democracia paritária”
É a primeira vez no Chile e no mundo que um grupo com mesmo número de homens e mulheres escreve uma Constituição.
Este princípio está refletido na nova Constituição proposta, que define o Chile como uma “democracia paritária”: propõe que as mulheres ocupem pelo menos 50% de todos os órgãos do Estado e ordena medidas para “alcançar a igualdade e a paridade substantivas”.
“O fato de esta Constituição ter sido redigida com base na paridade [de gênero] se reflete tanto nos direitos que foram considerados como na forma como o Estado está organizado. A democracia paritária é um princípio que permeia toda a Constituição. Essa é uma diferença radical”, afirma Lita Vivaldi, doutora em sociologia pela Universidade de Londres e integrante da Associação de Advogadas Feministas.
A atual Constituição afirma apenas que “homens e mulheres são iguais perante a lei” e que o Estado deve “garantir o direito das pessoas de participar com igualdade de oportunidades na vida nacional”.
“Não inclui nada relacionado a uma abordagem de gênero e paridade. O mais próximo foi a reforma constitucional em que se estabeleceu que as pessoas nascem livres e iguais em direitos. Antes, só dizia ‘homens'”, lembra Javier Couso, constitucionalista e acadêmico da Universidade de Utrecht, na Holanda.
Antiga omissão a povos indígenas vira “Estado plurinacional e intercultural”
A atual Constituição não menciona povos nativos ou indígenas.
Em uma grande mudança, o novo projeto define o Chile como um “Estado plurinacional e intercultural”, reconhecendo 11 povos e nações (Mapuche, Aymara, Rapa Nui, Lickanantay, Quéchua, Colla, Diaguita, Chango, Kawashkar, Yaghan, Selk’nam “e outros que possam ser reconhecidos na forma estabelecida da lei”, diz o texto).
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A nova Carta Magna preconiza que, dentro das entidades territoriais que compõem o Estado chileno, os povos e nações indígenas devem ser consultados e consentir em aspectos que afetem seus direitos.
Da mesma forma, a proposta reconhece os sistemas jurídicos dos povos indígenas, especificando que eles devem respeitar a Constituição e os tratados internacionais, e que qualquer impugnação às suas decisões será resolvida pela Suprema Corte chilena.
Para o ex-membro do Tribunal Constitucional chileno Jorge Correa Sutil, o texto em geral não define claramente o exercício da autonomia política e da justiça indígena. “Em uma questão tão importante quanto à igualdade perante à lei, não custaria nada estabelecer alguns limites.”
“Entendo que o reconhecimento da autonomia política implica poder repudiar uma lei do país. Caso contrário, não sei o que isso poderia significar… A possibilidade de uma justiça própria para as autoridades indígenas também está estabelecida. Não está definida quais autoridades, em quais assuntos, em quais territórios ou com respeito a quais pessoas… Isso vai exigir uma legislação, que pode ser muito razoável, mas que não tem limites constitucionais”, diz.