Que o esporte é sinônimo de qualidade de vida, todo mundo sabe. Mas o que a corrida de rua proporcionou ao adolescente, Bruno Andrade Mamede (15), de Uberlândia, vai muito além da saúde física conquistada na atividade esportiva. Aos quatro anos de idade, ele foi diagnosticado com autismo e, desde os 11, por meio da corrida, consegue amenizar os sintomas da doença.
Na largada, ao lado do pai, Rafael Tobias Diniz Mamede, o garoto parece não conhecer limites. Seus pés rapidamente estão sincronizados e alcançam largos passos rumo à linha de chegada. A dificuldade na fala não impede sua comunicação, pois seus olhos sorriem em agradecimento ao som dos aplausos daqueles que vibram por sua conquista. Bruno não está nem um pouco preocupado com medalhas. Ele quer correr. Seu corpo não esconde a ansiedade para logo avançar e esquecer o mundo que está à sua volta.
“Sempre na companhia do pai, Bruno diverte-se com a corrida e ameniza os sintomas do autismo.”
No pódio, a alegria do pai é emocionante. Diante de grandes dificuldades para chegarem até ali, o sentimento é somente de gratidão, pelos limites superados e pela vida que Bruno ainda tem pela frente. A mãe, Maria Rosa Beatriz Andrade Mamede assiste à dupla e se emociona com cada chegada. O sorriso do filho é seu sonho que se realiza. “Meu sonho é vê-lo feliz, independentemente de suas escolhas. E, na corrida, ele fica superfeliz. A prática esportiva não trouxe só o bem-estar físico, mas o psicológico também, porque depois que ele corre, fica mais calmo e mais tranquilo.”
Em 2013, o adolescente dava os primeiros passos para grandes vitórias. Caminhadas pelo bairro com a mãe e pelo parque com o pai se transformaram em 5km na primeira prova que correu em Uberlândia. O tempo, de fato, não importa, mas é preciso comemorar os 35 minutos conquistados durante o percurso. Hoje, com mais de 55 medalhas, é ao lado dos pais e do irmão, Gabriel Andrade Mamede que Bruno compartilha seus melhores momentos.
Mas parece que a corrida está mesmo é no sangue da família. Afinal, a inspiração para correr veio do pai, influenciador também de seu avô materno, Osvaldo José Andrade, ex fumante e que hoje, aos 65 anos de idade, pretende correr uma maratona, em 2018. “Eu, o Bruno e meu sogro caminhávamos toda semana, e de repente uns ‘senhorzinhos’ de 80 anos nos ultrapassavam. A gente achava aquilo inadmissível e foi assim que nos sentimos desafiados e começamos a correr também (risos)”, lembra o pai.
Rafael conta que começou a correr em 2010, pois estava cansado de sempre estar machucado no futebol, e desde então só obteve benefícios, como a baixa da pressão arterial e noites de sono melhores. Além de saúde física, a corrida também lhe proporcionou o estreitamento de laços com o filho que se tornou o grande companheiro de viagens e o maior orgulho da família. “Diante de tudo que já vivemos, a maior emoção que já senti foi ver o Bruno correr sozinho os 300 metros na São Silvestrinha, em 2015; e 600 metros, em 2016. O meu grande sonho é correr uma maratona quando ele completar seus 18 anos ou quando estiver pronto, preparado fisicamente e psicologicamente, porque até hoje não há relato de autistas que fizeram o mesmo”, conta o pai.
Correr uma maratona exige, de fato, muito preparo e condicionamento, mas parece que isso não tem sido problema para a dupla. Hoje, anualmente, pai e filho já correm cerca de 18km revezados até Romaria em comemoração ao dia de Nossa Senhora da Abadia e em agradecimento pela vida de Bruno. Para ter tanto fôlego, o adolescente se dedica a uma rotina bem movimentada. De manhã, Bruno tem aulas de segunda a sexta em escola regular. As meninas da sala, mais comunicativas e zelosas, estão sempre por perto para orientá-lo. Suas tardes são divididas em várias outras atividades, como academia, Kumon – método que visa desenvolver o autodidatismo nos alunos de forma individualizada por intermédio das disciplinas de matemática –, corrida no parque do Sabiá e piscina, que é uma das atividades que mais gosta de fazer.
Ele é metódico. Gosta sempre de fazer ou comer as mesmas coisas, inclusive os doces têm seu horário próprio para serem devorados. Ele é tranquilo e sempre pontual, não faz nada fora de seu horário habitual. São algumas características comuns que alguns autistas desenvolvem. Quando os pais precisam mudar algo em sua rotina, é preciso avisá-lo antes, para que assim não fique irritado.
Em casa, é na frente da TV ou do computador que Bruno gosta de passar seu tempo livre. Mas, mais do que isso, ele gosta é de ouvir histórias e narrá-las. É um amante de clássicos. Sua memória auditiva e a facilidade em aderir sotaques são fascinantes. Embora um pouco confuso, ele sabe narrar tudo que ouve. Sua voz tem emoção, e por um momento me questiono se não estou numa peça teatral em que Bruno é a grande estrela da noite. Sua maior dificuldade é na comunicação e nem sempre segue uma linha de raciocínio. Por vezes, repete uma mesma fala e, logo, se perde em outros pensamentos de outras histórias que ouviu ou viveu.
Sentado em um banco no parque, ao lado da mãe, ele narra seus contos, balança um pouco o corpo, junta um pouco as mãos e viaja em seus vários mundos, enquanto ali, é o único mundo da mãe. Beatriz conta que a gestação de Bruno até os dois anos de idade foi normal. Mas a partir daí, notou alguns atrasos no desenvolvimento do pequeno. “Após os dois anos de idade, ele começou a diminuir a fala. Não havia mais interação. Chamava-o pelo nome, mas ele não olhava. A primeira hipótese que pensamos foi que poderia ser surdez, mas quando colocávamos a musiquinha do Barney, um desenho que ele gostava muito, ele saía lá do quarto e ia para a sala assistir. Então, ele estava ouvindo bem. Ele imitava o Barney na televisão, mas quando a gente perguntava qual o nome do bichinho, ele não respondia mais”, lembra a mãe.
Bruno foi diagnosticado com autismo somente aos 3 anos e 8 meses, mas enquanto isso, Beatriz entrava em desespero em cada sessão de terapia. A mãe carregou nas costas uma culpa que nunca teve, quando psicólogos insistiam na teoria de que o menino fora traumatizado. “A gente contava para o psicólogo que ele não interagia na hora das brincadeiras e que nem olhava pra gente, e ele me perguntava como eu me sentia, porque meu filho não confiava em mim. Eu me sentia mal com isso, foi tão ruim, que parecia um interrogatório policial”, conta Beatriz. Ela sabia, não havia motivos para isso, sempre fora cuidadosa e atenciosa com seus filhos e jamais fizera algo que lhe causasse trauma, mas na falta do diagnóstico preciso, era culpa que o coração de uma mãe sentia. “Quando uma neurologista disse que era autismo, na verdade, eu senti foi um alívio, tirou um peso das minhas costas por ser um problema neurológico e não culpa dos pais”, lembra a mãe.
As opções de tratamento variam para cada criança. Bruno tem autismo leve e no início precisou de muita terapia em casa. As sessões aconteciam de segunda a sábado com duração de pelo menos quatro horas por dia. No entanto, a mãe, que trabalhava como secretária, precisou abdicar de seu trabalho para se dedicar ao filho. A escola também faz parte do tratamento, já que colabora na interação da criança com o meio em que está inserida.
No início do ano, Bruno, pela primeira vez, sofreu uma convulsão, e começou uma dieta de restrição de glúten como tratamento. Fisicamente, o adolescente sempre fora muito saudável. O autismo, em alguns casos, nem é perceptível. Mas o autista é considerado uma pessoa com deficiência e possui direitos e obrigações previstos na Convenção Internacional de Direitos da Pessoa com Deficiência e legislações relacionadas às pessoas com deficiência. “A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais” (§ 2º, do art. 1º da Lei nº 12.764/2012). O Bruno, apesar de sua limitação na coordenação motora, não possui muitos movimentos típicos aparentes de autistas. Em lugares públicos, Beatriz conta que sofre algumas dificuldades, apesar da tranquilidade do filho. “Às vezes, no supermercado, as pessoas acham ruim quando pegamos a fila preferencial. O Bruno tem muita sensibilidade ao barulho, então ele fica irritado nas filas e as pessoas ficam olhando torto”, conta Beatriz.
Mas nas ruas, enquanto pai e filho correm, os olhares são de encantamento pela superação da dupla. O amor fraternal, muitas vezes, transcende nosso entendimento, e o amor pela corrida é que ultrapassou os limites da deficiência.